Na semana em que se comemora o centenário de seu nascimento, dois tributos mostram porque Billie Holiday foi a principal inovadora do jazz em todos os tempos
Billie Holiday foi a maior cantora de jazz de todos os tempos? Sem
sombra de dúvida. Eleanora Fagan (seu verdadeiro nome) não possuía a
maleabilidade de Ella Fitzgerald ou a voz arrasa-quarteirão de Sarah
Vaughan, só para ficar em duas de suas "rivais" mais celebradas. Soube,
no entanto, usar com inteligência sua voz frágil e de pequeno alcance.
Como bem observado pelo crítico alemão Joachim E. Berendt, ela
personificou o conhecimento de que, no jazz, importa menos "o quê" e
mais "como". Billie abraçou com entusiasmo a chegada do microfone (que
amplificou sua voz e ressaltou a sutileza e a dramaticidade de suas
interpretações) e soube como poucas modular suas canções: acentuava
certas palavras ou sílabas para atingir um determinado efeito, acelerava
baladas, diminuía o andamento de canções rápidas - opções estéticas que
influenciaram infindáveis gerações de cantoras. "Sou herdeira do canto
de Billie, embora nossos registros vocais sejam muito diferentes",
confessa Cassandra Wilson, uma contralto de registro firme e caloroso.
Nesta semana chega às lojas Coming Forth by Day, que contém onze canções do repertório de Billie e uma composição de autoria de Cassandra: Last Song (For Lester),
que faz referência ao triste episódio em que Lady Day, como Billie era
chamada, foi impedida de cantar no velório de seu mentor, o saxofonista
Lester Young. Coming Forth by Day faz companhia a outra homenagem, Yesterday I Had the Blues: The Music of Billie Holiday,
no qual José James, cantor inspirado pelo jazz e pelo rap, recria nove
canções de Billie acompanhado por um trio estelar (ambos os discos serão
lançados no Brasil apenas em versão digital).
Em princípio, é fácil organizar um tributo a Billie Holiday. É só
recrutar um maestro consagrado que escreva arranjos pomposos e chamar
uma orquestra de renome para executar as canções de maneira reverente.
Mas esse estratagema, tão comum em projetos revisionistas como os da
cantora e pianista canadense Diana Krall, é uma traição aos princípios
musicais de Lady Day. Billie foi uma grande revolucionária de seu tempo:
não só criou o canto moderno, mas também foi a primeira a ressaltar a
importância do saxofone tenor no jazz. Mais do que uma parceria, as
canções que gravou com o saxofonista Lester Young são uma simbiose da
parte vocal com a instrumental. "Nunca quis imitá-la, mas sim adaptar
seu sentimento e sua musicalidade para o século XXI", teoriza Cassandra.
Em seus álbuns anteriores, a cantora nascida no Mississippi verteu
composições de Neil Young, U2 e até Monkees para o mundo do jazz. Em Coming Forth by Day,
ela levou o universo jazzístico de Billie Holiday para o rock.
Cassandra cercou-se de músicos dos Bad Seeds (banda de apoio do roqueiro
australiano Nick Cave) e dos Yeah Yeah Yeahs (o guitarrista Nick
Zinner, um expert na arte dos ruídos), além do veterano T-Bone Burnett e
do arranjador Van Dyke Parks. Os efeitos mais perceptíveis dessa
mutação estão em Strange Fruit, hino antirracismo de 1939.
Vinte anos atrás, Cassandra gravou uma versão em que se destacavam o
contrabaixo e um ruidoso solo de trompete. A atual possui um arranjo
repleto de efeitos, que acentua a barbaridade descrita na letra sobre o
assassinato e enforcamento de jovens negros.
A biografia de Billie é um prato cheio de tragédias: miséria,
estupros, abusos por parte da mãe, dos líderes das bandas nas quais era
vocalista e dos maridos desonestos e infiéis. Enamorou-se da bebida e da
heroína, que acabaram por matá-la em 17 de julho de 1959, aos 44 anos.
Fã de rock e de rap, José James apaixonou-se cedo pela voz de Billie.
"Adolescentes fazem drama por qualquer coisa, e a voz dela foi o meu
refúgio durante esses períodos de tristeza", diz. Conhecido por mesclar o
jazz com o rap e a soul music, James optou por uma formação ortodoxa
para Yesterday I Had the Blues: o pianista Jason Moran, o
baixista John Patitucci e o baterista Eric Harland o acompanham nas nove
faixas do tributo. O clima do álbum, porém, é vanguardista. Entre as
liberdades tomadas estão um God Bless the Child com instrumentos elétricos e, novamente, Strange Fruit.
Aqui, James sobrepõe várias vozes, dando a impressão de que não apenas
ele, mas diversas almas lamentam os "corpos negros que balançam à brisa
do Sul". Cassandra Wilson e José James são dois intérpretes que, a
exemplo de Billie, não têm paciência com a banalidade. "A melhor lição
que ela e o jazz nos deram foi seguir sempre em frente, numa constante
evolução", encerra Cassandra.
Fonte: Veja - abril 2015
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